Durante muitos anos fui evangélica. Depois agnóstica tendendo para o ateísmo. Depois de uma experiência que podemos chamar de mística, umbandista.
Devo dizer que a Umbanda não foi uma escolha lógica para mim, que venho de família evangélica de um lado – católica do outro. Absolutamente nenhum macumbeiro raiz: nada de Candomblé, Umbanda, Jurema, Quimbanda…
Claro que tinha minha avó Luíza, Irmã de Maria, católica devota, que sabia benzer verrugas – inclusive, benzeu uma horrorosa que eu tinha no joelho que simplesmente caiu. Se for contar causos, essa minha avó, quando eu tinha uns 7 anos, me levou na Igreja Católica e disse que esse seria nosso segredo. Explicou os detalhes do que acontecia ali e me disse que eu receberia a primeira comunhão – que não deveria mastigar a hóstia e que não deveria contar para ninguém, que seria nosso segredo.
Creio que isso acalmava sua consciência de mulher religiosa, apresentar a neta evangélica à igreja propiciando-lhe o segundo sacramento, a eucaristia. Depois de adulta descobri que ela fez o mesmo com a minha irmã, fazendo-a prometer segredo, exatamente da mesma forma… e, sinceramente, falar disso dá uma saudade danada.
Minha vó Luíza sempre foi uma mulher forte, cheia de razão, sem muita “frescurice” – apesar da vaidade e dos brinquinhos de coco e filetes de ouro.
Era uma mulher de fé inabalável, do tipo que tinha uma foto do Papa João Paulo II na parede da sala, isso, sem sequer saber que ele seria santificado depois.
Minha mãe também é uma mulher de fé, dentro de sua doutrina evangélica. A religiosidade ocupa grande parte de sua vida e traz os óculos através dos quais ela interpreta o mundo.
É engraçado observar como a fé parece um bichinho que pica mais as mulheres que os homens. Em templos de diversas tradições por nosso Brasil afora veremos, quase que de maneira absoluta, maioria feminina entre as fileiras de adeptos.
E por isso, mesmo para mim, era engraçado perceber a ausência desse sentimento. Sempre vi com absoluto respeito qualquer manifestação piedosa – e me acompanhou um fascínio pelo crer ao ponto de dedicar horas infindas de meu tempo livre pesquisando religiões, dentre as quais acabava tendo as preferidas. Hinduísmo e sua infinitude de divindades, era uma delas. Como não me apaixonar pela mãe Kali ou pelo Macaco Hanuman, mais humano e nobre do que a maior parte de nós?
Mas o engraçado é que mitologias e crenças distantes me pareciam maravilhosas mas eu ainda mantinha o hábito evangélico de me afastar de tudo o que fosse afrorreligioso, mesmo que o evangelismo tivesse ficado para trás há muito tempo. Por isso, quando de meu despertar religioso, posso afirmar com categoria que a Umbanda não era a escolha óbvia.
Mas cá estou: umbandista e fascinada, apaixonada pela minha religião.
Não posso deixar de reconhecer em mim a fé de minha avó e a dedicação de minha mãe.
Porque a religiosidade que ocupa o coração tem a capacidade de despertar em nós o grito ancestral que vem desde as cavernas, quando a natureza não tinha explicação. Ela cria raízes no coração e transborda pela pele transformando nosso entorno.
O incrível é perceber que a mesma religiosidade que é capaz de embelezar e espalhar amor – também é capaz de espalhar o ódio e a intolerância, dependendo de como é digerida e expressada. Dependendo de como é conduzida.
Existem evangélicos intolerantes. Existem católicos intolerantes. Existem afrorreligiosos intolerantes. Existe gente intolerante em todo tipo de manifestação de fé. Gente que acha que sua visão de mundo deve suplantar todas as demais e com isso anular todos os que são diferentes.
Podemos nós, que não o somos, independentemente de nosso pertencimento religioso, argumentar que tais não compreenderam corretamente, seja a mensagem de Cristo, seja a dos Orixás.
O que não podemos negar é sua existência em nossas fileiras. E mais importante que isso: cada qual dentro de sua denominação, assumir a responsabilidade em lidar com os intolerantes sempre no intuito de demonstrar que a fé disciplinada e não fanatizante produz amor e respeito. Produz a certeza de que conhecedor de todas as coisas e de todos os corações é Deus – o que nos reduz, humanos, ao que somos: meros detetives de Sua vontade, em constante busca pelo aprimoramento, como verdadeiros instrumentos da paz.
O que foge disso apenas nos afasta do Divino, tornando-nos vis, pequenos e tristes. Cheios de ódio e desamor.
Exatamente o oposto do que nos deve trazer a dedicação religiosa cristalina, real: a imersão verdadeira no Divino, cheia de espanto reverente por sua magnânima manifestação em nossas vidas. Um coração cheio de paz – não de guerra. De amor, não de ódio.
Um dia chego lá. Um dia, chegaremos todos.
Mas não sem luta interna e externa. Não sem ações concretas no intuito de verdadeiramente espalhar a paz – não o ódio.
@ProfaEricaCL