Eu detesto dividir pessoas entre “bons” e “maus”, como se o universo humano fosse passível de classificação tão primária em sua diversidade e infinitude.
Ouso dizer que, individualmente, não somos nem bons e nem maus na totalidade. Cada ser humano pode ser mais ou menos bom, mais ou menos mau – dependendo de muitas variáveis sendo elas tão subjetivas quanto a natureza interna ou tão objetivas quanto as relações sociais e familiares. A situação também é relevante. Jamais me esqueço de parte da população de Alcobaça (BA) invadindo a delegacia, arrancando de lá assassinos cruéis de uma família, espancando-os até a semiconsciência e atiçando fogo neles ainda vivos. Um deles se debatendo caído no chão não sai de minha memória, mesmo décadas depois: nem preciso fechar os olhos para revisitar suas pernas dando tesouradas no ar no suplício da dor em meio às labaredas, conforme mostrado para todo o Brasil pela imprensa.
Entre os cidadãos, inclusive crianças, havia os que olhavam displicentemente, como se não fosse nada. Outros com expressões de horror. Enquanto outros, participando ativamente, exigiam o sofrimento dos corpos que agrediram toda a sociedade – porque para nós é quase imediata a conexão com a família dizimada. Poderia ser a nossa e naquele momento era como se fosse. Os policiais observavam impotentes a força da multidão ensandecida.
Alcobaça é uma cidade pesqueira, cheia de gente amistosa e receptiva, simples e de bom coração, mas que foi incitada a um ato que poderia ser classificado de maldade extrema como consequência da própria maldade dos assassinos. Pessoas boas dominadas pela urgência da vingança, da justiça sem misericórdia ou equilíbrio.
Foi interessante ouvir como os residentes de lá, que conheci, desculpavam-se mutuamente pelos atos, justificando-os, sorrindo, falando dos cheiros e gritos como se contassem um fato corriqueiro da vida – realmente entendendo que tudo o que fizeram tratava-se de nada menos nem mais que justiça. E só.
Por outro lado, há o caso da então estudante Mikhailla Copello que, ao ver uma multidão pronta a linchar um ladrão, interpôs-se entre a turba e o criminoso impedindo sua possível morte. Ela relata o ódio nos olhos das pessoas que demonstra o quanto a vingança social é voltada para expurgar em um bode expiatório o que é moralmente inaceitável. É como se cada um da turba houvesse sido vítima do mal perpetrado pelo criminoso – e ele, por sua vez, fosse o culpado de todos os atos similares aos seus perpetrados contra outros. A vingança busca esmagar – o que é o oposto da justiça, que buscaria o equilíbrio.
Por casos como esses me vi desde cedo convencida de que não há bondade perfeita – nem o reverso de sua moeda. Hoje aquele homem é seu bom, prestativo, atencioso e respeitador vizinho – amanhã ele será quem compra o álcool que você usará para atear fogo em alguém junto aos seus demais familiares, amigos e colegas. Ou será ele a pessoa que se interporá entre a multidão enraivecida para proteger um criminoso desconhecido?
Hoje, aquele é o chefe do morro, conduzindo o tráfico em uma vida completamente tomada pela violência e marginalidade – e se descobre que ele se viu enlaçado por essa vida na ausência do Estado quando precisou pagar por cirurgia da filha, que corria risco de vida. É o caso do conhecido Nem da Rocinha, no presente encarcerado para pagar seus crimes iniciados apenas em virtude do amor por sua filha e a impossibilidade do tratamento gratuito.
Porém, em nossos sonhos, é interessante notar que não somos a turba violenta. O que desejamos no íntimo é sermos corajosos, perspicazes, heroicos, necessários – mas a sombra junguiana nos persegue, especialmente se teimamos em não a reconhecer.
É preciso admitir que na maior parte das vezes gostamos do vilão bem construído porque reconhecemos nele nossa humanidade expressa em suas fragilidades e defeitos. Achamos maravilhoso o Coringa de Joaquin Phoenix, mas não queremos sê-lo. Dói demais! Queremos mesmo é ser o super-herói da história, que tem seus momentos de sofrimento, mas é reconhecido como bom e necessário.
E a pergunta que fica é: se chamados pela vida para mostrarmo-nos em nossos mais íntimos sentimentos, quem seremos? Seremos o ser que habita nossos sonhos ou o que habita nossos pesadelos? Luz ou sombra?
O pouco que podemos fazer é o melhor na arte de domesticar nossos instintos barbáricos por meio da ética pedindo aos céus que seja o suficiente para manter nossa humanidade em situação de tensão. E aguardar – pedindo de verdade que o teste não venha, porque podemos nos assustar com o resultado.
E que se a prova vier, saiamos vencedores como os bons e necessários – não como os incineradores, mesmo que de assassinos, ou os linchadores, mesmo que de ladrões.
Nada de impunidade, claro, porque isso também não é equilíbrio: a cada qual o processo legal e a punição necessária por seus crimes. Que sejamos parte da ascensão – não da queda.
Oremos.
Profa. Érica
@ProfaEricaCL